Quinta-feira à noite

Subo os degraus agilmente com a mente em slow motion. Já escureceu, o tempo tá úmido, abafado, vai chover. A cada lance de escada uma lâmpada se acende. Minhas pernas são rápidas mas minha mente lenta diz que não vou chegar. Seu vizinho do 702 está sentado no chão do lado de fora de casa preparando a erva, apesar dos seus sessenta e tantos anos comprovados na carteira que diz "aposentado". Ele me fita e esboça um sorriso malicioso como um gato arisco. Abaixo a cabeça, ando ainda depressa. Dois andares depois e aqui estou eu, parada em frente à porta do 901. Encaro o olho mágico. É real? Minhas glândulas suprarrenais enlouquecem e me enviam um dilúvio de adrenalina. É real. E meu corpo reage como se fosse sempre a primeira vez. Apito a campainha, ouço seus passos indolentes do outro lado. Você abre a porta, samba-canção-xadrez-azul-bebê-e-branca e camisa-gola-cansada-azul-marinha finalizando com uma cara de estava-esperando-por-você. Sorrio e entro. Louça na pia e edredom no sofá misturados com a TV, computador e som ligados. "É pra suprir minha ausência?" - debocho - "É pra esperar tua presença." - você retruca. Abro a geladeira. Água, embalagens esquecidas, frutas pela metade. Exploro o lavabo, roubo outra gola cansada e troco meus jeans pelo teu conforto. Sento no sofá, inclino a cabeça, te observo. Trabalhando, se espreguiça, boceja, espirra. "Tá resfriado?" - fecho as janelas, você lança um "cuida-de-mim-estou-com-saudade" em forma de tosse seca ensaiada. Finge que não percebi, finjo também, rio querendo dizer "te-cuido-estava-com-saudade-também". Te abraço por trás, beijo teu lóbulo esquerdo, cheiro de chiclete de menta, café, roupa limpa, cama vazia e trabalho atrasado sendo ignorado. Two Door Cinema Club no som, desastre mudo na TV e a tela do computador em descanso. "And she spoke words that would melt in your hands..." Infinita quinta-feira quente e chuvosa no - nosso - 901. Minhas pernas não mais rápidas encontram tua cama, minha mente se concentra em preencher o vácuo da saudade, alcanço um pedaço de papel e rabisco um pedido: "Que o mundo acabe agora ou que o tempo não passe nunca mais."

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