Que seja recíproco

Desajeitado, implícito, ríspido, lindo. Ele estava estático perante ela. Seus olhos falavam em silêncio tudo que ela precisava ouvir. Mas ela necessitava das palavras.

Danilo nunca mudou. Sempre estava certo, sempre justo, sempre afável, amável, sempre improvável. Alice também se manteve a mesma, mas com um amor velho. No sentido literal: um amor calejado, repleto de rugas e cabelos brancos. Um amor sábio, maduro, vivido. Era esse amor que Alice guardava para Danilo. Era isso que ela tinha a oferecer. E ali estava ela, descabelada, bêbada, amarga com tanto amor velho para dar. Falou incessantemente tudo o que sentia, o que não sentia, o que queria sentir e por aí vai...

Danilo não usou da voz que dispunha uma vez sequer. Estava sentado, ou melhor, escarrado no chão da sala que fora tão bem decorada por ela. Ela que morava sozinha, acordava sozinha, jantava sozinha. Ela que era sozinha em período integral. Ela estava em pé, andando trêmula de um lado para o outro, aparentando ser histérica, dramática, atriz. O rosto dele quase se perdia no breu se não fosse a meia luz do abajur chinês comprado em alguma feirinha no centro da cidade. Talvez estivesse procurando as palavras certas pra dizer. Talvez estivesse pensando que não era justo ter que falar mais do que já tinha falado.

Não, você não pode voltar assim. Eu te apaguei de mim. Eu sei que apaguei. Sei que esqueci. Você voltou só para me tornar cativa daquilo que há muito me libertei. A porta do quarto estava entreaberta, revelando a genuína desorganização dela. Na sala, pilhas e mais pilhas de papel, xícaras de café, fotos e mais fotos. Alice sempre foi excêntrica. Sempre viu muito mais além do que era exposto. Danilo era o famoso “pé no chão”. Era o tal balde de água fria na vida da Alice. Alice que sonhava, que ria, que amava um Danilo distante, um Danilo que não tinha sentimentos para dar. Não para Alice. Ela insistiu, procurou, escreveu. Escreveu para lembrar a ele e a ela os sentimentos que ainda lhe causavam enxaquecas e TPM’s prolongadas. O som da voz dela era a única coisa que irrompia o silêncio caótico do ambiente. Era muita coisa guardada, sabe? Muita carta não lida, muito abraço não dado, muito sexo não feito. Muito porre tomado, muitos caras chatos e outros sobremaneira legais, mas que ainda não eram ele. Parecia uma vida desgraçada, mas as desgraças de Alice a faziam escrever. A alimentavam mês após mês, o que indiretamente dizia à mãe dela que estava bem, que estava (sobre)vivendo.

Não importa o que foi, mas sim o que é. Importa que entrei no último avião da noite e estou aqui. Danilo tinha olheiras e bolsas embaixo dos olhos. Bolsas que traziam noites mal e não dormidas. Trouxe de viagem rugas que ele não tinha antes de partir. Um tom amargo no sorriso que adquiriu quando percebeu que era sozinho.

Essas coisas demoram a serem percebidas, sabe? A gente nunca se sente sozinho, e se sentir, liga pro amigo, pra mãe, pro terapeuta, pro “sexo fixo”. Danilo tentou todas as alternativas e viu que não há farra, colo, sessão ou muito menos gozada que suprisse o vazio que ele se tornou. Sim, porque Danilo não estava vazio, não se tornou vazio. Ele era o vazio e finalmente percebeu. Leu e releu tudo o que ela carinhosamente já havia escrito. Riu das cartas em que ela se despedia, que ela amava, que ela desejava estar com ele.

Parecia que não havia nada a ser feito naquele apartamento da Rua das Abóboras. Ela se sentou no chão de frente para ele. Aproximou-se até que as respirações de ambos se camuflassem. Alice continuava linda à sua maneira. Danilo analisou seus lábios. Ele quase não se lembrava mais da perfeita simetria deles. Lembrou-se dos dias em que aqueles lábios convidavam os lábios dele para um encontro a sós, o que o fez lembrar que todos esses convites foram negados, por orgulho, medo ou excesso de boa consciência. Eu preciso do teu corpo no meu corpo, preciso do teu cheiro na minha pele, do teu amor na minha vida. E sei que te fiz sofrer, mas acredite, no fim quem sofreu mais foi eu. Que deixei de amar de verdade por tanto tempo... Você amou de verdade, Alice. Você me amou e sei que ainda ama. Caso contrário, por que as lágrimas? Por que ouço daqui teu coração batendo desesperado? Sei que teu corpo clama pelo meu e não é pretensão. É que teu corpo é reflexo do meu. Cansei de olhar no espelho e não ver você. Cansei de não ter você em mim.

Com sua eterna mania de ter o que falar, Alice procurava as palavras certas, mas sabia que não era sua vez de se pronunciar. Que não era sua vez de fazer acontecer. Que fez isso por anos a fio e cansou. A Alice que já havia imaginado o casamento, os filhos, as bodas, a vida toda. A Alice que não procurava pelo homem da vida dela, porque já havia encontrado. Mas precisava ser recíproco, sabe? Os dedos cansados de Danilo encontraram abrigo nos emaranhados do cabelo dela, as lágrimas brotavam do rosto de ambos sem nenhuma vergonha. A respiração era escassa, ofegante, apavorada. E no encostar dos lábios encontraram a tal reciprocidade que tanto falaram, procuraram e não acharam. Estava ali, depois de tanto rodeio, tantas viagens, amores findos e cartas agora finalmente lidas.

E no chão daquele apartamento até então solitário, eles se encontraram. E bastava aquela vez para que não houvesse mais volta. Entenderam a demora, os desvios e os buracos da história. Danilo entendeu que não há boa consciência que brincasse com o destino. Alice descobriu que numa briga com o coração, é impossível ganhar. Que temos amor próprio apenas quando somos amados por alguém. Porque o amor desse alguém nos revela a nós um alguém tão esplêndido que nem sabíamos que podíamos ser.

Sabe como é, naquele chão frio, eles se amaram. Não houve “e se”. Houve o que aconteceu e o que continuará sendo até o fim dos dias. Porque assim que tem que ser. Os corpos nus e quentes se embriagavam de amor, recuperando o tempo perdido. O tempo que na verdade, aumentou o desejo de amar e ser amado daqueles dois seres. Não sei se você entende. Uma vez que Danilo entrou por aquela porta, só saiu para casar, trabalhar, ver o parto do primeiro filho – Miguel, indiozinho japonês, nariz de batata, cara de joelho, cinqüenta centímetros e três quilos. – Para buscar a filha na aula de Balé – Valentina, respondona, pidona, com os lábios da mãe, mas com o sorriso do pai. – Depois daquela noite, Danilo só saiu daquele apartamento com hora marcada pra voltar. Porque valeu a pena pegar o último voo vindo de Munique às quatro da manhã com todas as olheiras e bolsas e rugas. Porque valeu a pena Alice ter escrito cada carta, por ter cometido cada erro, por ter cedido a cada impulso. Porque tudo que viveram tinha que ser vivido separadamente, para que naquele chão frio, naquela noite quente, eles passassem a ser um só.

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