Me olhei no espelho

Cinco e meia da manhã. Abro a porta de casa e o silêncio me engole como se eu entrasse num bunker que me protege do mundo. O breu externo ressalta a tormenta interna. Meu cachorro me recebe carinhosamente na cozinha, aliso os pelos dele por três segundos e julgo ser suficiente. Me arrasto escada acima. Zero sono. Paro pra me observar no espelho. A maquiagem absurdamente preta dos olhos já escorria rumo às bochechas. O cabelo preso num coque feito com desdém. A roupa com cheiro de cigarro alheio. E eu me olhando no fundo dos olhos. A noite foi ótima, divertidíssima, pura e inocente. Balada de rock num inferninho underground regada à gente esquisita. Gordinhas taradas no pole dance, travestis de lantejoula, garotinhas chapadas no sofá, homens suspeitos desacompanhados... “Hey, Jude, don’t make it bad...” e a noite tinha virado uma pornochanchada do cacete. Mas eu já estava em casa, me olhando no fundo dos olhos. Eu não quero entender as pessoas, o amor, as festas, homens, mães, políticos corruptos, playboyzinhos drogados financiando o tráfico... Nada. Tanto faz. Eu quero me entender. Fixei o olhar na curva entre meu lábio inferior e o queixo. Quis chorar. Você sai sozinho e da mesma maneira volta pra casa. Não pertence essencialmente a nenhum abraço. Abraços são casas ambulantes cheios de vida. Eu sou sem teto, cara. Posso me abraçar? Me encarei com desprezo e retribuí o olhar com vergonha. Ser, não ser, meio ser, talvez ser. Merda nenhuma. Que se exploda a boa consciência e a má vá pro inferno.Você pode pertencer a um abraço, fazer ou não social, fumar, não beber, se foder ou ser feliz, cara, mas um dia você percebe que o pior olhar de decepção é aquele que você recebe ao se olhar no espelho. Por tudo que deixou de ser, que não nunca foi e que, desacreditados, pensamos que nem nunca será. Deitei na cama. Às vezes a gente acha que está onde queria mas nem ao menos é o que deve ser. Nós mesmos.

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